quinta-feira, 23 de março de 2017

Viagem ao centro da Terra, Escala Richter, Chaminés de Kimberlito e camadas da Terra

    Quando se pensa no centro da Terra, ou na viagem até o seu centro, vários símbolos latentes, inevitavelmente, vêm a mente. Um autor em particular colocou em palavras muitas dessas imagens. Júlio Verne com sua obra Viagem ao Centro da Terra, de 1864, uma obra que leva o leitor dentro de uma emocionante aventura narrada em primeira pessoa por Axel, um garoto que participa do percurso ao centro da terra, realizado graças a um manuscrito decifrado pelo próprio.


Júlio Verne





















    Mas a verdade é que sabemos surpreendentemente pouco sobre o que acontece sob nossos pés. É inacreditável que, quando Ford começou a fabricar automóveis, ainda não soubéssemos que a Terra possui um núcleo. E a ideia de que os continentes flutuam sobre a superfície como ninfeias só se tornou um conhecimento comum há menos de uma geração. “Por incrível que pareça”, escreveu Richard Feynman, “compreendemos a distribuição de matéria no interior do Sol bem melhor do que compreendemos o interior da Terra”.
    A distância entre a superfície da Terra e o centro são 6.370 quilômetros, o que não é tanto assim. Calculou-se que, se abríssemos um poço até o centro e atirássemos um tijolo lá dentro, este levaria algo em torno de 45 minutos para atingir o fundo (embora naquele ponto não tivesse peso, já que toda a gravidade da Terra estaria acima e em torno dele, e não embaixo). Nossas próprias tentativas de penetrar em direção ao centro tem sido bem modestas. Uma ou duas minas de ouro sul-africanas atingem uma profundidade de um pouco mais de três quilômetros, mas a maioria das minas na Terra não vai além de quatrocentos metros abaixo da superfície. Se o planeta fosse uma maça, ainda não teríamos rompido a casca. Na verdade não chegamos nem perto disso.

 

   Até pouco menos de um século atrás, o que os cientistas mais bem informados sabiam sobre o interior da Terra não era muito mais do que um mineiro de carvão sabia: que era possível cavar o solo por certa distância e que então se atingia a rocha dura, e só. Em 1906, um geólogo irlandês chamado R. D. Oldham, ao examinar alguns registros sismográficos de um terremoto na Guatemala, observou que certas ondas de choque penetraram até certo ponto nas profundezas da Terra e depois ricochetearam em um ângulo, como se tivessem topado com algum tipo de barreira. Daí ele deduziu que a Terra possui um núcleo. Três anos depois, um sismólogo croata chamado Andrija Mohorovičić estava estudando gráficos de um terremoto em Zagreb quando notou uma deflexão estranha similar, mas num nível mais raso. Ele havia descoberto o limite entre a crosta e a camada imediatamente inferior, o manto; essa zona passou a ser conhecida, como a descontinuidade de Mohorovičić, ou, de forma abreviada, Moho.


Andrija Mohorovičić




















   Estávamos começando a obter uma vaga idéia das camadas do interior da Terra – embora fosse apenas vaga. Somente em 1936, uma cientista dinamarquesa chamada Inge Lehmann, estudando sismógrafos de terremotos na Nova Zelândia, descobriu que havia dois núcleos: um interno, que agora acreditamos ser sólido, e um externo (aquele detectado por Oldham), que se acredita ser líquido e o centro do magnetismo.


Inge Lehmann

   Mais ou menos na época em que Lehmann refinava nossa compreensão básica do interior da Terra ao estudar as ondas sísmicas de terremotos, dois geólogos do Caltech, na Califórnia, descobriram um meio de fazer comparações entre um terremoto e o seguinte. Eles eram Charles Richter e Beno Gutenberg, embora injustamente a escala quase de imediato se tornasse conhecida apenas como Richter. (O culpado não foi Richter. Sujeito modesto, ele nunca se referiu a escala por seu próprio nome, chamando-a sempre de “a escala de magnitude”.)


   A escala Richter sempre foi muito mal compreendida por não cientistas, um pouco menos agora do que em seus primórdios, quando em visita ao escritório de Richter muitas vezes as pessoas pediam para ver a famosa escala, achando que  fosse algum tipo de máquina. Claro que a escala é mais uma idéia do que um objeto, uma medida arbitrária dos tremores da Terra baseada em medições da superfície. Ela sobe exponencialmente; assim, um terremoto de 7,3 é cinquenta vezes mais poderoso do que um de 6,3 e 2500 vezes mais poderoso do que um terremoto de 5,3.
Em termos de devastação pura e concentrada, é provável que o terremoto mais intenso já registrado na história tenha sido aquele que atingiu – em essência, destroçou – Lisboa, Portugal, no dia de Todos o Santos (1º de novembro) de 1755. Pouco antes das dez da manhã, a cidade foi atingida por uma súbita guinada lateral, com magnitude estimada de 9,0, e sacudida ferozmente por sete minutos completos. A força convulsiva foi tamanha que a água afastou-se do porto da cidade e retornou numa onda com quinze metros de altura, aumentando a destruição. Quando enfim o movimento cessou, os sobreviventes desfrutaram só de três minutos de calma antes que um segundo choque adviesse, apenas ligeiramente menos forte do que o primeiro. Um terceiro choque final seguiu-se duas horas depois. Ao término daquele cataclismo, 60 mil pessoas estavam mortas e praticamente todas as construções num raio de quilômetros estavam reduzidas a escombros.
   Voltando a questão centro da Terra, na década de 1960, em plena Guerra fria, os cientistas se sentiam tão frustrados com o pouco que sabiam sobre o interior da Terra que decidiram tomar uma providência. Eles tiveram a ideia de perfurar o solo oceânico (a crosta continental era espessa demais) até a descontinuidade de Moho e extrair um pedaço do manto terrestre para examiná-lo á vontade. O raciocínio era que, se conseguissem compreender a natureza das rochas dentro da Terra, poderiam começar a entender como elas interagiam, e assim possivelmente prever terremotos e outros eventos indesejáveis. O projeto conhecido como Mohole foi um fracasso e em 1966 o Congresso norte-americano cancelou o projeto.
   Quatro anos depois, cientistas soviéticos decidiram tentar a sorte em Terra seca. Eles escolheram um local na península de Kola, perto da fronteira com a Finlândia, e puseram mãos à obra, na esperança de chegar a uma profundeza de quinze quilômetros. O trabalho mostrou-se mais difícil do que esperavam, mas os soviéticos foram louvavelmente persistentes. Quando enfim desistiram, dezenove anos depois, haviam perfurado até uma profundidade de 12 262 metros. Levando-se em conta que a crosta da Terra representa apenas cerca de 0,3% do volume do planeta e que o buraco de Kola nem sequer transpusera um terço da crosta, estamos longe de ter conquistado o interior.
  




   O interessante é que, apesar da modéstia do buraco, quase tudo a seu respeito foi surpreendente. Estudos de ondas sísmicas levaram os cientistas a prever, com um grau razoável de confiança, que encontrariam rochas sedimentares até um profundeza de 4700 metros, seguidas de granito nos próximos 2300 metros e basalto dali em diante. A camada sedimentar acabou se revelando 50% mais profunda do que se esperava e a camada basáltica jamais foi encontrada. Além disso, o mundo la embaixo era bem mais quente do que qualquer um contava, com temperatura a 10 mil metros de 180º centígrados, quase o dobro do nível previsto. O mais surpreendente de tudo foi que a rocha naquela profundeza estava saturada de água, algo que não se julgava possível.
   Como não podemos enxergar através da Terra, o jeito é recorrer a outras técnicas, que envolvem sobretudo o estudo de ondas ao percorrerem o interior. Também sabemos um pouco sobre o manto devido ao que chamamos de chaminés de kimberlito, onde os diamantes se formam. O que acontece é que, nas profundezas da Terra, uma explosão projeta uma bola de canhão de magma em direção à superfície, a velocidades supersônicas. Trata-se de um evento totalmente aleatório. Uma chaminé de kimberlito poderia explodir no seu quintal enquanto você está lendo estas linhas. Por provirem de tamanhas profundezas – até duzentos quilômetros abaixo -, elas trazem para cima todo tipo de coisas que não normalmente encontradas na superfície ou perto dela: uma rocha chamada peridotito, cristais de olivina e – apenas de vez em quando, em cerca de uma chaminé em cem – diamantes. Montes de carbono sobem com as ejeções de kimberlito, mas a maior parte de volatiza ou se transforma em grafite. Só ocasionalmente um pedaço dele sobe à velocidade certa e esfria com a rapidez necessária para se tornar um diamante. Foi uma dessas chaminés que tornou Johanesburgo a cidade mineradora de diamantes mais produtiva do mundo, mas pode haver outras jazidas ainda maiores que não conhecemos.

Este poço na África do Sul foi uma chaminé de kimberlito explorado até se esgotar, em 1914.

    Portanto, até onde vai nosso conhecimento do que existe dentro da Terra? Não muito longe. Os cientistas costumam concordar que o mundo sob nossos pés compõe-se de quatro camadas: a crosta externa rochosa, um manto de rocha quente e viscosa, um núcleo externo líquido e um núcleo interno sólido. Sabemos que a superfície é dominada por silicatos, que são relativamente leves e insuficientemente pesados para explicar a densidade global do planeta. Logo, deve existir um material mais pesado lá dentro. Sabemos que, para gerar nosso campo magnético, em algum ponto do interior deve existir um cinturão concentrado de elementos metálicos em estado líquido. No tocante a esses pontos reina um consenso universal. Quase todo o resto – como as camadas interagem, o que faz com que se comportem de determinada maneira, o que farão em qualquer época do futuro – é objeto de pelo menos alguma incerteza e, em geral, de um bocado de incerteza.
   Mesmo a única parte visível, a crosta, é objeto de um debate razoavelmente estridente. Quase todo livro didático de geologia informa que a crosta continental possui de cinco a dez quilômetros de espessura sob os oceanos e de 65 a 95 quilômetros de espessura sob as grandes cadeias de montanhas, mas há muitas variabilidades intrigantes nessas generalizações. A crosta sob as montanhas Sierra Nevada, por exemplo, tem apenas entre trinta e quarenta quilômetros de espessura, e ninguém sabe por quê. Segundo todas as leis da geofísica, essas montanhas deveriam estar afundando, como em areia movediça. (Há quem ache que elas podem realmente estar.)
   A crosta e parte do manto externo são chamados, conjuntamente, de litosfera (do grego lithos, que significa “pedra”). A litosfera flutua sobre uma camada de rocha mais plástica denominada astenosfera (da palavra grega para “sem força”), mas esse termos não são inteiramente satisfatórios. Dizer que a litosfera flutua sobre a astenosfera dá a entender um grau de leveza que não condiz com a realidade. De forma semelhante, é enganador achar que as rochas flutuam sobre algo assim com achamos que materiais flutuam sobre a superfície. As rochas são viscosas, porém apenas à maneira do vidro. Pode não parecer, mas todo o vidro na Terra está fluindo para baixo sob a atração implacável da gravidade. Se removermos uma seção de um vitral realmente antigo da janela de uma catedral europeia, notaremos que está perceptivelmente mais grosso na parte inferior do que na superior. Esse é o tipo de “fluxo” de que estamos falando. O ponteiro das horas em um relógio se move cerca de 10 mil vezes mais rápido que as rochas flutuantes do manto.
   Os movimentos não ocorrem apenas lateralmente, com o deslocamento das placas da Terra através da superfície, mas também para cima e para baixo, à medida que as rochas sobem e caem sob o processo turbulento conhecido como convecção. Processo esse que demorou para ser assimilado.
Em torno de 1970, quando os geofísicos perceberam o tumulto que ocorria nas profundezas, a novidade foi um tanto chocante. Como diz Shawna Vogel, no livro Naked Earth: the new geophysics [Terra nua: a nova geofísica]: “Foi como se os cientistas tivessem passado décadas estudando as camadas da atmosfera terrestre – troposfera, estratosfera, e assim por diante – e, de repente, descobrissem a existência do vento”.

Bryson, Bill (2004), Breve história de quase tudo, Companhia das Letras.